O livre-arbítrio não nos exime de educar nossos filhos
por Ozeas Caldas Moura
O
texto de Provérbios 22:6, na Versão Almeida Revista e
Atualizada no Brasil, está assim traduzido: “Ensina a criança
no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho, não se
desviará dele.” Este texto tem causado perplexidade a muitos,
pois geralmente é entendido como garantindo que a criança à
qual foram ensinadas as verdades bíblicas, não se desvia da fé,
nem mesmo na velhice. Mas o fato é que, muitas vezes, pais fiéis
vêem, com o coração dolorido, seus filhos deixarem a igreja e
renegarem as verdades nas quais uma vez creram, a despeito da
boa instrução dada a eles, desde os mais tenros anos.
Estaria
o texto de Provérbios 22:6 afirmando que crianças ensinadas
nas verdades bíblicas não apostatam? Se assim for, onde ficaria
a liberdade de escolha (e até a de escolher o mal) dada por Deus
ao ser humano? Que Deus respeita o direito de escolha de cada
pessoa, está claro em passagens tais como: “Eis que, hoje, Eu ponho
diante de vós a bênção e a maldição” (Deut. 11:26); “Vê que
proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal” (Deut. 30:15); “...
te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois,
a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Deut. 30:19); “...
escolhei, hoje, a quem sirvais” (Jos. 24:15); “Se quiserdes e Me
ouvirdes, comereis o melhor desta terra. Mas, se recusardes e
fordes rebeldes, sereis devorados à espada, porque a boca do
Senhor o disse” (Isa. 1:19 e 20).
Passemos, então, à
análise de Prov. 22:6. Uma tradução literal do hebraico
ficaria assim: “Instrui a criança no início de seu caminho, e
quando envelhecer não se afastará dele.” A que estaria se
referindo a expressão possessiva “dele” (mimenâ)? Parece
claro que é ao “caminho” (derek) da frase anterior. Mas qual
seria o conteúdo dessa instrução? A resposta deve ser buscada no
contexto do capítulo 22 de Provérbios, especialmente em seus
cinco primeiros versos. Deve-se atentar, antes de tudo, que
Provérbios 22 é um texto Sapiencial, sendo característica desse
tipo de literatura sua forte ênfase na conduta ou
comportamento do indivíduo. Assim, o caminho do qual a criança
instruída não se afastaria, é o caminho do “bom nome” (Prov.
22:1), da “prudência” (22:3), da “humildade”, que leva ao
respeito pelas coisas divinas (22:4), e do retirar-se para longe
do caminho do perverso (22:5). Dessa maneira, o texto estaria
dizendo que, se desde a infância essas virtudes
(honestidade, prudência, humildade) forem ensinadas às
crianças, elas poderiam perdurar por toda a vida.
Possivelmente
o que mais atrapalhe a compreensão de Provérbios 22:6,
fazendo-o até contradizer outros textos bíblicos sobre o
livre-arbítrio dado por Deus aos seres humanos, seja o de tomar o
texto primeiramente e tão somente em sentido teológico, ou
seja, tomar o “caminho” no qual a criança deveria andar como
sendo o das verdades bíblicas, nas quais deveria seguir. Como
visto no parágrafo anterior, Provérbios 22:6 deve ser visto,
primeiramente, como um texto sapiencial, com enfoque sobre
regras de bom comportamento, que os pais deveriam ensinar aos
filhos. Assim, o primeiro sentido é ético-comportamental. A
TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia) parece ter captado bem o
sentido, ao traduzir o verso assim: “Ensina bons hábitos ao
jovem, em início de caminhada; não os deixará, nem quando
envelhecer.”
Uma palavra mais sobre o referido texto.
Se alguém pretende tomá-lo em sentido teológico, com “caminho”
significando as verdades bíblicas a serem ensinadas às
crianças pelos pais, deveria fazê-lo tomando o verbo hebraico
savar (“desviar”) no sentido de “evitar”, “cessar”. Nesse caso, o
texto poderia estar dizendo que uma pessoa ensinada nas
verdades da Palavra de Deus não conseguiria “desviar-se” delas,
no sentido de “evitar” que essas verdades lhe venham à mente,
mesmo vivendo longe de Deus, e não no sentido de que alguém
ensinado nos caminhos de Deus conforme conta na Bíblia, está
imune à apostasia. Tomado em sentido teológico, Provérbios
22:6 deveria ser visto como um princípio geral, para o qual há
muitas exceções, das quais podemos mencionar algumas: Deus
perdeu a terça parte de Seus filhos (Apoc. 12:4, 7-9); Esaú
tornou-se impuro e profano, apesar da vida de fé vivida por seu
pai Isaque (Heb. 12:16); os filhos do profeta Samuel se tornaram
corruptos e não quiseram imitar a vida piedosa de seu pai (I Sam.
8:1-5). Poderíamos dizer, então, que, se uma criança procede
corretamente diante de Deus, vivendo de acordo com Sua
vontade, é porque isso lhe foi ensinado desde nova, e que
Provérbios 22:6 não é uma promessa divina de que uma vez que a
criança recebeu as instruções da Palavra de Deus, ela não
apostatará.
Outro texto que, à semelhança de Provérbios
22:6, tem sido mal-compreendido, é o de Jeremias 31:16 e 17: “Assim
diz o Senhor: Reprime a tua voz de choro e as lágrimas de teus
olhos; porque há recompensa para as tuas obras, diz o Senhor, pois
os teus filhos voltarão da terra do inimigo. Há esperança para o
teu futuro, diz o Senhor, porque teus filhos voltarão para os
seus territórios.” Este texto tem sido compreendido como uma
promessa de Deus de trazer de volta para a igreja todos os filhos
apostatados cujos pais permaneceram fiéis. Será que é isso o
que o texto quer dizer?
Uma regra básica de
interpretação bíblica é olhar o contexto de qualquer texto da
Escritura, para ver sua aplicação primária. Se olharmos o
contexto dos versos 16 e 17 de Jeremias 31, veremos que eles se
referem primeiramente ao cativeiro babilônico. Esse
capítulo trata do júbilo pela promessa de livramento do
cativeiro, mencionada no capítulo anterior (cap. 30). O
texto de Jeremias 31:16 e 17 deve ser analisado à luz de versos
como o de Jeremias 30:3: “Porque ... mudarei a sorte do meu
povo...; fá-los-ei voltar para a terra que dei a seus pais, e a
possuirão”, e de Jeremias 31:8: “Eis que os trarei da terra do
Norte e os congregarei das extremidades da terra.”
Numa
aplicação secundária do texto de Jeremias 31:16 e 17, poderia
se pensar na promessa de Deus de trazer os filhos de pais
cristãos de volta ao redil. Mas isto só poderá ocorrer se estes
filhos consentirem com a atuação divina em sua vida e forem
receptivos à voz do Espírito Santo. Do contrário, Deus
estaria violentando o direito deles de escolher o bem ou o mal
(cf. Deut. 30:15 e 19).
Em conclusão, pode-se dizer que
Provérbios 22:6 não deveria ser entendido como garantia de que,
uma vez ensinada nas verdades da Palavra de Deus, a criança
nunca apostatará delas. Como já foi mencionado, o texto em
alusão refere-se, primeiramente, ao ensino de bons hábitos às
crianças, os quais tendem a permanecer por toda a vida.
Mas
o fato de Deus respeitar o livre-arbítrio dado às pessoas não
deve levar-nos ao descaso quanto a ensinar nossos filhos nos
caminhos de Deus. Certamente, eles só poderão optar pelo bem se
este lhes for ensinado, pois todos nascemos maus (cf. Efés. 2:3).
Mas, após o ensino do bem, nossos filhos é que devem tomar sua
decisão, para o bem ou para o mal, e Deus a respeita. Para todos,
pais e filhos, as palavras divinas de Isaías 55:6 e 7 continuam
muito atuais: “Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-O
enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo,
os seus pensamentos; converta-se ao Senhor, que Se compadecerá
dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar.”
Ozeas Caldas Moura - Editor da Casa Publicadora Brasileira
Fonte: Revista Adventista, 2002, Casa Publicadora Brasileira
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